segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Oficina Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany










Prezado companheiros Gustavo Maia, Vinicius Maia e Lis Brasil


Em virtude, da ocasião do I Centenário em Santa Maria, tomo liberdade para chegar-me até vossas senhorias, e delinear os nossos trabalhos de oficineiros do vale do São Francisco.


O maior gênio da criatividade de esculpir carrancas da história do médio São Francisco, chama-se Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany, nascido em dois de abril de 1884, em Santa Maria da Vitória, filho de Cornélio Biquiba dy Lafuente e Marcelina do Espírito Santo, apelidado de Guarany por ser bisneto de índia.


Esculpiu durante toda sua vida, cerca de 800 carrancas. Sua primeira carranca foi esculpida aos 17 anos em 1901 para a barca Tamandaré. Guarany apresentava traços fisionômicos e na cor a mistura das raças, que formaram o povo brasileiro. Era magro, de pele morena e estatura baixa. Aprendeu a ler e escrever com padres. Apesar de pouco estudo, era capaz de proferir discursos públicos, entrevista em redes de televisão e palestras sobre seus trabalhos. E sobre o rio São Francisco, narrava suas histórias e suas lendas, que foram fonte de inspiração para o seu sucesso como artesão.


Até o ano de 1940, quando finalizou o ciclo das barcas, ele já havia produzido cerca de oitenta carrancas. A partir desta data ele parou de esculpir figuras de proa e passou a fazer peças utilitárias e decorativas. Trabalhou também como carpinteiro, marceneiro e tanoeiro.


Segundo os críticos da arte, suas obras são de grande valor artístico. Guarany, como todos os artistas, sofreu grande influência cultural regional e estrangeira. Essas mudanças são vistas a partir de suas obras que, dependendo da época em que foram produzidas possuem aspectos diferenciados. Umas com maior potencial artístico e outras com menos vigor. Mas todas concentradas nos aspectos sociocultural e mitológico da região do Médio São Francisco.


Em 1968, recebeu o diploma de membro correspondente da Academia Brasileira de Belas Artes e esculpiu carrancas até fins de 1979. Foi objeto de estudo do Engenheiro Paulo Pardal, que escreveu o livro Carrancas do São Francisco. Rio de Janeiro: Funarte, 1979 e de Clarival Valladares do Prado; Guarany: 80 anos de carrancas. Rio de Janeiro: Barlendis, 1981. Foi por inúmeras vezes entrevistado pela Rede Globo, para o programa Fantástico e Globo Repórter.


Morreu no dia 05 de maio de 1985, dias antes do seu óbito em entrevista par o Jornal Tribuna da Bahia, ele desabafa, que “tudo ficou na promessa e o governo o abandonou”.


Diante desse descaso político cultural e para dar continuidade da obra de Guarany fundamos uma Oficina de Carrancas - Oficina Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany - no mesmo local onde ele esculpia as suas primícias figuras de proa, na oficio atendemos alunos de escolas públicas que se interessam pelo o oficio de carranqueiro, arte que predominou nas cidades ribeirinhas do vale do São Francisco e Bacia do Rio Corrente, também temos um projeto de reflorestamento das árvores que utilizamos para esculpir as carrancas (cedro e umburana), para que no futuro teremos matéria prima para tal ação, e de certa fora é uma maneira de retribuir à natureza a madeira que nos foi dado.


A entidade é composta pela seguinte diretoria: Presidente – Júnior Oliveira Guarany (neto do escultor Francisco Biquiba de Lafuente Guarany), Vice – Maria Mercês Trade, Tesoureiro – Josué Dias e Secretário - Reinaldo Moreira dos Santos, estes diretores e propagadores da idéia lutam diuturnamente juntamente com o Ponto de Cultura da Bacia do Corrente, para a manutenção da Oficina Francisco Biquiba de Lafuente Guarany, que merece todo o nosso empenho e comprometimento, mesmo assim deparamos com empecilhos que não permitem angariar recursos monetários para a manutenção da oficina deste notável artista Francisco Biquiba de Lafuente Guarany, que o Brasil consagrou como o maior dos carranqueiros e artesãos multiformes.


Pela magnitude do alvitre apreciada por Paulo Pardal e outros amantes da obra, sentimos a vontade para divulgar esta causa tão nobre deste admirável gênio, e o tempo é propício é agora. Em visitinhas ao blog Curimã, fiquei alegre em ver que vocês divulgam as obras dos santa-marienses Francisco Guarany e Juarandi Assis.
Visite-nos http://oficinafranciscodlafuenteguarany.blogspot.com e conheça nossos trabalhos.

Atenciosamente,



Os Dirigentes da Oficina Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany

Santa Maria da Vitória - BA - 2/8/2009

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O Modernismo - Parte 1

Ismael Nery



“ Esperei até hoje que vós me descobrísseis. Quis dar-vos o prazer de vos sentir crescer. A minha excessiva proximidade impediu, porém, que me olhásseis como realmente sou. Contar-vos-ei agora a minha história, e descreverei o meu físico para que disto tireis proveito necessário e justifiqueis a minha e a vossa existência.

Pertenço à esta espécie de homens que não constroem nem destroem, mas que explicam toda a construção e toda a destruição. Eu sou um predestinado, como foram também meus predecessores e como serão meus sucessores. Através dos séculos deveremos desenvolver o germe que no princípio da vida recebemos. Nós somos os grandes sacrificados que sofrem por todo o erro e atraso dos homens. Somos os homens que amam e consolam: não somos amados nem consolados. Se não fóssemos portadores do germe de que vos falei, há muito que a nossa raça teria acabado violentamente.

Quando tudo tiver atingido seu fim, aí começará nossa visível utilidade. O homem agora distribui suas esperanças na arte e na ciência. Chegará um tempo em que a arte e a ciência não bastarão mais para suprir a ânsia crescente de compreensão que a humanidade tem. Toda a arte resume-se em suprir às necessidades científicas, toda a ciência resume-se num estudo de equilíbrio da vida e numa tentativa formidável de conhecimento da matéria da vida. Ah! Se nós nos pudéssemos conhecer, ou se, pelo menos, pudéssemos chegar a conhecer um outro homem!...A solidão do homem é o que mais o apavora na vida. Os homens se olham como desconhecidos com as mesmas roupas. Vivemos desconfiados – tudo fazemos para garantir o que possuímos, com medo dos ladrões de toda espécie que vemos em todos os homens.

Inventamos o direito e a polícia; pomos em nossas casas grades de ferro e portas de bronze. O homem se esquece de que o que possui moralmente não é acessível aos ladrões, mas aumenta o seu desassossego com as suas posses físicas, esquecendo a ciência por ele já conquistada. Para que guardais ums mulher que não é vossa? Para que vos bateis por uma idéia que não sentis? Para que duas casas num só corpo? Para que o sustento de uma vida sem consolo? Ah, a esperança! Que é a esperança? Tenhamos esperança-aumentamos a esperança-eu em Deus, e vós em mim e em meus sucessores. Um conselho vos dou, com autoridade que me conferem as rugas da minha testa, o meu olhar febril e as minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causar nojo, mesmo que o nojo seja mínimo. Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico de vossas sensibilidades. Já reparaste, meus irmãos, que vivemos num mundo em que existem soldados, juízes e prostitutas? Onde se encarcera um homem pelo depoimento das testemunhas, ou se enforca um outro por insultar um líder? Existem testemunhas? Existem líderes? Que é a vontade do povo? Que é o bem geral? Já fizeste, com a ciência que tendes, a psicologia de um chefe? Por que não acreditar em Deus, quando acreditais até nos regimes políticos?

A humanidade, como as plantas, precisa de estrume. Dos nossos corpos renascem aqueles corpos gloriosos que encerraram as almas dos poetas, aqueles de que nós já trazemos o germe. Tudo foi feito no princípio – porém tudo só existirá realmente em tempos diversos. Os poetas serão os últimos homens a existir, porque neles é que manifesta a vocação transcendente do homem.
Todo homem recita um poema nas vésperas de sua morte. A humanidade recitará também o seu nas vésperas da sua, pela boca de todos os homens que nesse tempo serão poetas. – “Mirabili Dominus in opera ens”. – Ismael Nery, novembro de 1933.
O Modernismo no Brasil – Bardi, P.M.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

20 Anos sem o Elvis do Sertão



Luiz Gonzaga popularizou um ritmo típico do nordeste, em uma época em que o preconceito musical era forte; relembre a história do Rei do Baião

Por Cristiano Bastos

Agosto de 1989. O mês e o ano que levaram embora o mito Raul Seixas carregou, também, outra poderosa lenda da música brasileira: Luiz Gonzaga do Nascimento - também festejado como "O Rei do Baião", "Gonzagão" ou "Lua". Por excelência, Gonzaga foi o ourives nordestino de inestimáveis pérolas da chamada "Música Popular Brasileira". Basta citar uma delas: a universal "Asa Branca", legitimador tesouro da corroída nomenclatura "MPB" - da qual, no século 20, muito pouco (ou nada) restou de popular.
Nascido no dia 13 de dezembro de 1912, na localidade de Exu, sertão pernambucano, Gonzagão partiu no dia 2 de agosto de 1989, há 20 anos. A maior influência brasileira do conterrâneo nordestino Raul Seixas foi o Rei do Baião: "Luiz Gonzaga tinha um remelexo 'elvispresleiniano'", aludiu publicamente, mais de uma vez, Raulzito. Como lembrança dessas duas décadas que se passaram - após o pai da "Asa Branca" "voar para o sertão celestial" -, a Som Livre lançou a coletânea do artista na série Sempre. Um álbum repleto de clássicos para fazer a manutenção da eternidade de canções como "Respeita Januário", "Sabiá, Baião", "O Xote das Meninas", "Qui nem Jiló" e "A Vida do Viajante". Em 2009, o cantor Zé Ramalho lançou um álbum em sua homenagem, intitulado Zé Ramalho Canta Luiz Gonzaga. Ainda sem data de lançamento, também está previsto para chegar ao mercado o DVD reunindo Gonzagão e o cearense Raimundo Fagner, em estúdio, no ano de 1984, quando da gravação do disco que lançaram juntos naquele ano. A Sony/BMG - que detém quase todo o extenso catálogo do velho Lua na velha RCA Victor (assim como milhares de fonogramas adormecidos de Nelson Gonçalves) -, poderá reeditar alguns títulos. O mais difícil, no entanto, será condensar a trilha-sonora do filme que vem por aí em breve, o qual vai contar a história de Luiz Gonzaga nos moldes heróicos de Dois Filhos de Francisco, cinebiografia de Zezé di Camargo & Luciano.

Homem simples, no preâmbulo da grandiosa aventura que dedicou à música, Gonzaga trabalhou na lavoura. O menino gastava suas horas de folga para aprender sanfona com seu pai, o imortalizado Januário da canção. Aos 12 anos, acompanhava o pai em bailes e festas. Perto dos 18, mudou-se para Crato, no Ceará, onde virou corneteiro no 23º Batalhão de Caçadores. Viajou por Minas Gerais e São Paulo até chegar ao Rio de Janeiro, no final dos anos 30. Desligou-se da vida militar e passou, então, a dedicar-se exclusivamente à música. Assinou contrato com a Rádio Nacional e, daí em diante, popularizou ritmos como xaxado, forró, coco, xote, ciranda, embolada e, claro, baião.

De Recife, Pernambuco, o guitarrista e vocalista da banda punk Love Toys (cujas influências "urbanas" são Dead Boys e Black Flag), o xará Luiz Manghi, analisa que Gonzagão revelou ao Brasil um ritmo tipicamente nordestino em uma época em que o preconceito com esse povo era bem forte. "Costumo dizer que ele fazia uma versão nordestina do blues. Um som que tinha sua base temática na difícil vida do nordestino." O jornalista e crítico musical Tárik de Souza divide a mesma ideia: "Enquanto Presley foi o "Cavalo de Tróia" da negritude num país racista, Gonzaga colocou o nordeste, com sua cultura refinada e seus costumes peculiares, no mapa da MPB. Era um momento de urbanização do sudeste, em que nordestino era encarado como peão de obra, cabeça chata, ser inferior. O Rei do Baião desvelou a diversificada cultura deste povo, então encarado de forma pejorativa" . De fato, Luiz Gonzaga é influência para gente de todas as extremidades do Brasil. No Rio Grande do Sul, o guitarrista de jazz Gulherme Almeida (da banda Pública - seu pai, Iraci Rocha, por sua vez, é dos nomes mais respeitados da música nativista gaúcha) diz que a acordeona do velho Lua soava as notas cantadas pelo nordeste. Para Guilherme, além de todo mérito artístico - como compositor, instrumentista e intérprete -, a identidade de Gonzaga, na música nacional, foi muito bem estabelecida. "No momento em que um artista assume a cultura da sua região, ele acorda um compromisso com seu povo, de retratar aquela vivência: hábitos, sotaque, vestimenta". Do nordeste ao sul, o guitarrista discorre, há grandes artistas que arremessaram a cultura de seu povo ao mundo. Assim como Jamie Caetano Braun (um dos maiores poetas/pajadores do RS), em seus versos, canta "Tenho a xirua mais linda do que a flor da macanilha (flor típica dos pampas gaúchos)", do outro lado, Luiz Gonzaga dispara - valendo-se, também, de sua flora para ambientar seus versos: "Mandacarú, quando fulora na seca, é um sinal que a chuva chega no sertão".

O Rei do Baião fez muito sucesso dos anos 50 aos 80. Ele criou a ideia de chamar o forró autêntico de "pé-de-serra". O ritmo, explica a jornalista brasiliense Adriana Caitano, ainda é mantido pelos nordestinos que lutam por deixá-lo vivo - apesar das trágicas misturas sofridas pelo gênero com o passar dos anos. "O período no qual mais se ouve forró no Brasil é o das festas juninas. Mas ele não existe só nessa época e nem só no nordeste", observa Adriana, que é autora do documentário Movimento Pé-de-Serra Moderno e mantém um blog a respeito (www.forropedeserradf.blogspot.com). Segundo a estudiosa, para os nordestinos, principalmente os mais velhos, Luiz Gonzaga foi um pai. Foi quem mostrou ao mundo que a cultura de lá também tinha seu imenso valor. "Luiz Gonzaga foi um marco. A música brasileira divide-se entre antes e depois dele". Para os jovens forrozeiros de hoje, que não o viram vivo, explica Adriana, Luiz Gonzaga é quase um santo: "Um mito que parece renascer toda vez que alguém ensaia uns acordes na sanfona".
O recifense Paulo Vanderley, além de comandar o site Luiz Lua Gonzaga, alimenta uma relação de cordial amizade com a família de Luiz Gonzaga. Paulo se diz admirador, também, da obra do sobrinho de Lua, o sanfoneiro Joquinha Gonzaga - o qual, segundo ele, está dando continuidade à qualidade do trabalho ensinado pelo tio. Nos anos 80, ainda criança, ele morou em Exu, momento em que teve o prazer de conhecer e conviver com "Seu Luiz". De lá para cá, Paulo agilizou bíblico trabalho de pesquisa: adquiriu todos os seus discos e digitalizou, aproximadamente, 400 revistas contendo reportagens a respeito do mestre. Em meio a fantásticas histórias, para preservá-las, criou o museu virtual Luiz Lua Gonzaga. Ele destaca uma envolvendo - para variar - o "Malcolm McLaren" brasileiro, o agitador Carlos Imperial. "Ele anunciou que os Beatles estariam prontos para entrar em estúdio e gravar 'Asa Branca', composta por Gonzaga e Humberto Teixeira. Imperial espalhou que a gravação entraria no álbum de capa branca..." A falsa notícia, publicada em diversos veículos, rendeu tremendos dividendos a Luiz Gonzaga, justamente quando ele não ocupava a parada musical nas capitais. "Todo mundo queria saber a verdade: se eu tinha ganhado dinheiro com essa história toda. Não passou de uma grande mentira", deixou bem claro o Rei do Baião, em uma entrevista dada em Recife. O sucesso, contudo, nunca terminou para ele. Revive sempre que seu musical nome é pronunciado: Luiz Gonzaga.


Cristiano Bastos finaliza o documentário Nas Paredes da Pedra Encantada, sobre o disco Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol, de 1975

quarta-feira, 15 de julho de 2009

E no princípio, era a roda

Por Bruno Ribeiro


O samba já foi tema de centenas de livros que tentam explicar a sua história e o seu ritmo. Poucos, porém, foram além disso e aprofundaram aspectos pouco abordados deste riquíssimo gênero musical. No Princípio, era a Roda – Um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes (Ed. Rocco) veio completar esta lacuna e colocar o nome do jornalista e historiador carioca Roberto M. Moura entre os maiores estudiosos do samba na atualidade.
Fruto de uma tese de doutorado em Música para a UniRio, o livro parte do princípio de que a roda é anterior ao samba desde que o gênero nasceu na casa de Tia Ciata, na Praça Onze, no começo do século passado. O ponto de partida que o pesquisador usa para defender a tese é a oposição complementar entre "casa" e "rua", sugerida pelo antropólogo Roberto Da Matta – para quem a roda de samba simbolizaria a "casa" do sambista – onde se reproduziriam as relações mais íntimas e profundas – enquanto que a escola de samba representaria a "rua" – uma vez dominada pela política de apadrinhamento, pela troca de favores e pelo jogo do bicho.
"Quando comecei a repetir que não é o samba que faz a roda, mas a roda que faz o samba, ouvi reações acadêmicas do tipo ‘quem disse isso?’, como se fosse uma heresia. Tive então a certeza de estar trabalhando em cima de uma idéia original", diz Moura, sem perder tempo na resposta aos críticos da academia: "Eu estou dizendo isso, depois de cem anos de bibliografia musical no Brasil".
A maior contribuição que a obra do jornalista presta ao conhecimento que se tem sobre o samba é a de deixar bastante claras as diferenças entre roda de samba, samba e escola de samba – três entidades que existem autônomas, embora ainda andem juntas, na cabeça da maioria das pessoas. No livro, a divisão da história do samba em três etapas: a roda (fenômeno que criou as condições para o aparecimento do samba), o samba propriamente dito (como gênero musical) e a escola de samba (sua institucionalização). Moura conta como o sambista saiu das rodas para recriar nas escolas de samba a extensão de seu quintal. E de como retorna para a "casa", no momento em que as escolas tornam-se instituições voltadas para o dinheiro.
Em meados dos anos 60, quando é implantada a "ditadura do samba-enredo" nas escolas, lugares como o bar Zicartola, espetáculos como o Rosa de Ouro e noitadas de samba no Teatro Opinião passam a aglutinar mais sambistas que todas as escolas de samba juntas. "Não é à toa que João Nogueira se afasta da Portela ao ser impedido de cantar um samba de meio de ano na quadra. Na ditadura das escolas, a partir de meados dos anos 60, só entra samba-enredo", comenta o pesquisador.
Para entender o funcionamento de uma roda de samba, Roberto M. Moura propõe um retorno no tempo e traça uma linha cronológica que começa no quintal da Tia Ciata, passa por Cacique de Ramos e desemboca nas rodas da Lapa, feitas pela atual juventude carioca. O autor define a roda como "resultado da dialética entre o cotidiano e a utopia", capaz de instaurar no sambista "a ilusão da eternidade".
Como constata a tese, a permanência da roda ao longo do século é explicada pela gama de sentimentos capaz de gerar entre seus participantes. "É como se, durante a roda de samba, "o tempo tivesse parado e o mundo ficasse lá fora". Quando a baiana Ciata abriu seu quintal, no Rio de Janeiro, para que músicos e batuqueiros pudessem tocar e cantar ao redor de uma enorme mesa repleta de garrafas e quitutes, não imaginava que este modelo de confraternização universal se tornasse a alma e a razão de sobrevivência de um gênero musical tradicionalmente perseguido – inicialmente pela polícia e depois pelo preconceito da sociedade.
Apesar do aspecto aparentemente anárquico e espontâneo da roda de samba, o livro revela a existência de regras fundamentais para o seu bom funcionamento. Na roda a hierarquia é respeitada não pelo sucesso ou pelo dinheiro que a pessoa tem, mas por sua história dentro do samba. Segundo a obra, há formas e formas de ser aceito no universo da roda. A mais natural delas é cantando e tocando – mas não são formas exclusivas. Há quem fique apenas no coro e nas palmas e mesmo assim seja considerado "do ramo". Entre os simpatizantes, há quem cuide da cozinha e dos tira-gostos. Sobre as regras de aceitação, registra o autor:
"Como em qualquer prática social semelhante, a roda também tem uma espécie de regulamento interno: não se pode ousar manejar um instrumento sem competência, falar mais alto do que o som que vem da roda (um papo discreto, no canto, mesmo uma paquera, nenhum problema), interromper quem está puxando o samba e, pecado venial quando o sujeito está se aproximando mas suportável quando ele já pertence ao grupo, puxar um samba e esquecer a letra pela metade".
Apesar de ser fruto de uma tese de doutorado e envolver aspectos etnológicos, sociológicos e antropológicos, No princípio, era a roda, é um bate-papo informal, objetivo e rico. Assim como o samba.
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Bruno Ribeiro é jornalista e escritor. Torcedor do glorioso São Cristóvão Futebol Clube, não deu certo como ponta-esquerda, não deu certo como poeta maldito, não deu certo como compositor de samba. Foi ser jornalista e escrever sobre os bares de Campinas. Segue o lema de Maiakóvsky: também acha preferível morrer de vodca a morrer de tédio. Há algum tempo é editor da seção de Artes da Revista Consciência.Net. Contato: bruno@cumbuca.com.br

domingo, 28 de junho de 2009

Dos confins do Brasil, brotou o poeta do povo!






Devo dizer que considero João do Vale uma das figuras mais importantes da música popular brasileira. Se é certo que em 1964-65, quando se realizou pela primeira vez o show Opinião, os grandes centros do país tomaram conhecimento de sua existência e lhe reconheceram os méritos de compositor, não é menos certo que pouca gente se deu conta do que ele realmente significa como expressão de nossa cultura popular. Isso se deve ao fato de que João do Vale não é um compositor de origem urbana e que só agora se começa a vencer o preconceito que tem cercado as manifestações populares sertanejas. É verdade que em determinados momentos, com Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, essa música conseguiu ganhar o auditório nacional, mas para, em seguida, perder o lugar conquistado. É que o Brasil é grande e diversificado. Basta dizer que, quando João do Vale se tornou um nome nacional, já tinha quase trezentas músicas gravadas, que o Nordeste inteiro conhecia e cantava, enquanto no sul ninguém ainda ouvira falar nele. Lembro-me da primeira vez que o vi cantar em público, em 1963, no Sindicato dos Bancários, no Rio, convidado por Thereza Aragão. Dentro de um terno branco engomado, pisando sem jeito com uns sapatões de verniz, entrou em cena. Parecia encabulado, mas quando começou a cantar, empolgou o auditório. Era como se nascesse ali o novo João do Vale que, menos de dois anos depois, na arena do Teatro Opinião, faria o público ora rir, ora chorar, com a força e a sinceridade de sua música e de sua palavra. Autenticidade é uma palavra besta mas é na autenticidade que reside a força desse João maranhense, vindo de Pedreiras para dar voz nacional ao sertão. Mas não só nisso, e não apenas no seu talento, como também em sua cultura. Há gente que pensa que culto é apenas quem leu muitos livros. No entanto, se tivesse tido, como eu, a oportunidade de ouvir João cantar as músicas sertanejas que ele sabe, veria que ele é a expressão viva de uma cultura. De uma cultura que não está nos livros mas na memória e no coração dos artistas do povo.

FERREIRA GULLAR – 1977
Bibliografia: Nova História da Música Popular Brasileira - Ed. Abril Cultural



“Sou a flô que o vento jogou no chão, mas ficou um galho pra outra flô brotá. A minha flô o vento pode levá, mas o meu perfume fica boiando no á”
(João do Vale)




Trecho do documentário "João do Vale - Muita Gente Desconhece"



Carcará, de João do Vale, interpretada por Trio Curimã

terça-feira, 16 de junho de 2009

domingo, 24 de maio de 2009

CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO

Pintura: Márcia Berenguer Cabral



As famosas carrancas do rio São Francisco constituem um enigma de nossa arte popular, na qual ocupam um lugar de especial destaque, tanto pela notável expressão artística como, principalmente, por sua dupla originalidade. As barcas do São Francisco são as únicas embarcações populares de povos ocidentais que apresentaram, de modo generalizado, figuras de proa, pelo menos nos últimos séculos. E estas constituem exemplo único no mundo de esculturas de proas zooantropomorfas. A originalidade é o mais importante atributo de uma obra de arte. Segundo Arnold Hausen, “para tener em absoluto calidad artística, uma obra de arte tiene que abrir lãs puertas a uma visión el mundo nueva e peculiar”.








A origem das carrancas do São Francisco deve ter sido a imitação da decoração de navios de alto-mar, vistos nas capitais das Províncias da Bahia e do país pelos pequenos nobres e fazendeiros do São Francisco em suas viagens à civilização. Devemos agradecer ao isolamento em que viviam os habitantes do médio São Francisco o fato de terem criado um tipo de figura de proa inédito em todo mundo: peças de olhos esbugalhados, misto de homem, com suas sobrancelhas arqueadas, e de animal, com sua expressão feroz e sua cabeleira leonina.





Fecha-se assim o ciclo: a evolução das embarcações primitivas levou as figuras de proa, surgidas basicamente com conotações místicas, aos grandes navios, onde sua função era decorativa. E a influência dos grandes navios levou à imitação das suas figuras de proa, com intuito inicialmente decorativo, em pequenas embarcações de uma pequena sociedade rural primitiva. Seus membros, entretanto, deram frequentemente a essas figuras uma conotação mística. Em linhas gerais, a evolução esboçada para as figuras de proa é a própria evolução da arte.




Carrancas do famoso escultor Francisco Guarany



É Wilson Lins quem nos diz que nas noites de conversa, após o jantar, isolados em um barranco, contavam histórias de assombração e encantamento. “Religiosos e cheios de temores pelo desconhecido: se é remeiro, o seu remo quase sempre tem uma cruz ou símbolo de Salomão desenhados na pá.” E acrescenta que a crendice é muito forte, mas as assombrações locais não têm os requintes de perversidades das de outras regiões do país. “ Dos mitos aquáticos do vale, o Caboclo-d’Água e a Mãe-d’Água são os mais conhecidos”. Mas ainda há o Minhocão (ou Surubim-Rei). Estes três “enchem de leves pavores noturnos a gente da beira do rio...”.


Pintura: Jurandir Assis



Esta forte crendice permite melhor compreender por que o povo ribeirinho, inclusive alguns escultores de carrancas, atribuiu às figuras de proa a missão de espantar os duendes do rio. Daí o freqüente aspecto assustado e assustador das carrancas; de quem se apavorou com o duende que viu e, ao mesmo tempo, quer aterrorizá-lo com sua fisionomia retesa, de olhos esbugalhados.








Pode-se afirmar que as primeiras carrancas datam de 1875-1880, embora seu uso no médio São Francisco só tenha se generalizado neste século. É interessante notar que a Academia de Belas Artes da Bahia foi fundada em 1876, sendo possível que a repercussão deste fato, no São Francisco, tenha influído na decoração das barcas.








Francisco Guarany foi o escultor de carrancas que mais produziu. O vigor da escultura primitiva de Guarany, marcado pelo fantástico, resulta de sua autenticidade. Capingão, o cavalo encantado, Curupema, a índia que vira onça, Megatério, o animal pré-histórico e todas as demais carrancas estão em seu mundo interior. Outros grandes escultores foram Sebastião Branco, de Juazeiro, Moreira do Prado, de Januária e Afrânio, de Barreira.



Foto: Rafael Medeiros


As carrancas do São Francisco são uma manifestação artística coletiva, com caracteres comuns, respeitadas as individualidades de cada artista, como não se encontra em nenhum outro local ou época. Fruto da criação de uma cultura e de uma região isoladas do resto do país e do mundo, cujos artistas populares, a partir da idéia de esculpir uma figura de proa, criaram soluções plásticas próprias, de elevado conteúdo artístico e emocional, que provocam um verdadeiro impacto. Possivelmente até negativo, em alguns, mas esta é uma das características de uma verdadeira obra de arte: criar o impacto. Pode haver quem não aprecie as carrancas, mas jamais quem a elas fique indiferente.


Bibliografia: PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. Rio de Janeiro: Funarte, 1979.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Espetáculo "Os choros de Villa-Lobos" - 21 a 24 de maio no Palácio das Artes

Corpos artísticos da Fundação Clóvis Salgado homenageiam Villa-Lobos em espetáculo no Palácio das Artes - Belo Horizonte/MG

A Cia de Dança Palácio das Artes, Orquestra Sinfônica e Coral Lírico de Minas Gerais são os três corpos artísticos mantidos pela Fundação Clóvis Salgado que juntos vão prestar homenagem ao cinquentenário de morte do célebre compositor brasileiro, Heitor Villa-Lobos. A apresentação especial será nos dias 21, 22, 23 e 24 de maio, no Grande Teatro do Palácio das Artes. Às 20h30 na quinta, sexta e sábado e às 19h no domingo. Direção geral e cenografia Ione Medeiros, coreografia Jomar Mesquita e regência de Charles Roussin.

Para fazer uma homenagem digna e sincera a um brasileiro nascido no Rio de Janeiro e que sozinho, aprendeu violão na adolescência, em meio às rodas de choro cariocas, os três corpos artísticos apresentarão o espetáculo Villa-Lobos: Choros. A dança será acompanhada por vozes e instrumentos de uma das séries mais importantes de Villa-Lobos, os Choros, escritos na década de 1920 a 1930. O compositor fez 16 choros para as mais variadas formações: piano ou guitarra solista, conjunto de câmara, voz e orquestra, coros, grande orquestra.

Villa-Lobos foi considerado um compositor único por unir músicas com sons naturais. O artista utilizava sons da mata, de eventos indígenas, africanos, cantigas, choros, sambas e outros gêneros muito utilizados no Brasil. A preocupação era sempre fundir suas obras com aspectos da música realizada no país.

A diretora do espetáculo Ione Medeiros fala da obra que escolheram para homenagear o cinquentenário do compositor Heitor Villa-Lobos. “Os Choros de Villa-Lobos nos remetem ao modernismo dos anos 20, movimento que se propunha a repensar a nossa cultura, resgatar nossas tradições, costumes e etnias, tendo em vista a construção de uma identidade brasileira. Dentro desta proposta, presente na literatura, nas artes plásticas, na música, nos manifestos de artistas e intelectuais, elaborava-se a seguinte questão: que cara tem o Brasil? Retomando esta perspectiva, queremos esboçar cenicamente um caleidoscópio telúrico feito de sons, cores e imagens, reavivando ícones e traços de nossa memória afetiva e comemoramos a exuberância criativa de nosso povo”. O espetáculo é dedicado ao grande músico Sebastião Viana.


Obras Pierrô, Índia Carajá e Cavalo Marinho, de Cândido Portinari: algumas das obras modernistas que inspiraram o espetáculo

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu!


VILLA-LOBOS
Por Fabio Gomes

Heitor Villa-Lobos, o maior compositor brasileiro, é autor de mais de mil músicas. São peças de vários gêneros, como concertos, sinfonias, suítes, quartetos de cordas, sonatas, bailados, arranjos para coro, peças para pequenos conjuntos e para grande orquestra.


Villa-Lobos nasceu no Rio de Janeiro em 1887. Seu pai, Raul Villa-Lobos, violoncelista amador, reunia em casa um grupo de amigos que tocava música de câmara. Com a tia Zizinha, o jovem Heitor aprendeu a amar a obra de Johann Sebastian Bach. Ainda pequeno, incentivado pelo pai, Heitor iniciou-se no aprendizado de clarinete e violoncelo. Muitos anos depois, Villa-Lobos lembrava o papel paterno em sua formação musical:


- Meu pai, além de ser homem de aprimorada cultura geral e excepcionalmente inteligente, era um músico prático, técnico e perfeito. Com ele, sempre assistia a ensaios, concertos e óperas.


A mãe de Villa-Lobos, dona Noêmia, é que não gostava muito desse interesse pela música, pois queria que o filho fosse médico. Um pouco maior, ele passou a freqüentar as rodas de boemia onde se fazia o melhor choro da época.


Villa-Lobos aprendeu na escola da vida. Chegou a freqüentar o Instituto Nacional de Música, aos 20 anos. Mas não suportou a rigidez da disciplina e da falta de espírito criativo da escola. O INM não era o lugar de sua música, e sim da música-papel, como ele dizia:


- Há três espécies de compositores: os que escrevem música-papel, segundo regras ou modas; os que escrevem para ser originais e realizar algo que outros não fizeram e, finalmente, os que escrevem música porque não podem viver sem ela. Só a terceira categoria tem valor.


Com toda a certeza, Villa-Lobos pertence à terceira categoria. Sua grandeza está no fato de ter conseguido uma mistura perfeita do folclore brasileiro com a música de concerto européia, com a marca da sua forte personalidade. Ele não se limitou a recolher temas do povo e os harmonizar, como tantos já haviam feito. Nem se contentou em reproduzir modelos de além-mar, caso de outro grande compositor brasileiro, Carlos Gomes. Alguns autores como Alexandre Levy e Brasílio Itiberê já haviam utilizado temas populares em obras sinfônicas antes de Villa-Lobos. Mas estes temas quase sempre eram citações, nunca se alterando a fórmula que já vinha pronta da Europa. Villa partiu da riqueza musical do nosso povo para chegar a formas novas de composição na área da música de concerto, como os Choros, as Bachianas Brasileiras, as Serestas e as Cirandas.


Villa-Lobos viajou por praticamente todo o Brasil de 1905 a 1912. As condições para fazer tal aventura na época eram as mais precárias possíveis. Durante sua estada na Amazônia, por volta de 1910, sua mãe mandou rezar uma missa pela alma do filho que ela já julgava morto. Imaginem a surpresa de dona Noêmia, tempos depois, ao ver o filho ressuscitando no Rio de Janeiro...
Foto: Folha On-line

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O Bruxo



Nasce um novo Hermeto!


30 de Abril de 2004 - Hermeto Paschoal encontrou vida nova em Curitiba, onde se radicou, deixando São Paulo, por conta do amor por sua mulher Aline, sua discípula na arte musical e que - vangloria-se - o faz transbordar, aos 67 anos, de alegria e esperança. O músico continua o criador de sempre. Em junho, apresenta nova sinfonia, executada ao ar livre, "junto com os passarinhos", pela Orquestra Sinfônica de Manaus. Na próxima segunda-feira, volta a Londres para tocar com a Big Bend no Cheltenham International Jazz Festival. Hermeto vive um momento especial de produção intelectual.
Hermeto é o futuro, os sons, os ritmos e a espontaneidade. Com sua música peculiar, natural, verdadeira, que nasce de suas raízes nordestinas e brasileiras, dos rios e passarinhos, ganha os corações e mentes de um público cada vez mais internacional.
O alagoano de Lagoa da Canoa, que nasceu agricultor, traz o erudito para o popular. Põe em prática a descoberta dos sons e ritmos que nos cercam, inclusive no dia a dia e as experiências que são desenvolvidas nas melhores academias de música contemporânea.

Um iluminado, como se os deuses lhe tivessem dado o poder de transitar entre a musicalidade da natureza e do homem. Criou uma nova linguagem, resultante destes dois mundos. A música tradicional, também, se transforma em suas composições e absorve a ansiedade daqueles que prevêem o futuro da música universal.
A alegria e disposição de Hermeto, que o fez trocar São Paulo por Curitiba, é a cantora lírica gaúcha Aline Paula Nilson, nome artístico de Aline Morena. "Hoje estou na minha terceira adolescência. Estava indo tocar nos Estados Unidos, quando apareceu Aline. Ela tem a cabeça igual a minha. Já compus diversas músicas de viola caipira, especialmente para ela", disse Hermeto Paschoal.
Os dois se conheceram em um show em Londrina, no Paraná, e nunca mais se separaram. Aline, gaúcha de Erechim, estudava a obra de Hermeto no Conservatório Musical de Curitiba. "Eu tinha ido ao encontro da música, na verdade encontrei mais do que a música: meu amor e a música juntos", disse Aline. Ela hoje participa dos shows no Brasil e no exterior.
Hermeto Paschoal, volta a tocar com a Big Bend - banda de 25 músicos formada apenas de saxofone e trompete - no dia 3 de maio, no "Cheltenham International Jazz Festival" da capital inglesa. Depois, a banda toca no "Norfolk and Norwich Festival 2004", em dois outros espetáculos. As maiores expectativas do músico são dois workshops na "Royal Academy of Music in London".

Na última vez que andou por lá, um jornal de Londres publicou matéria sobre o seu espetáculo com o seguinte título: "Hermeto Paschoal - o show da década". O músico pergunta: "Se fosse um jogo de tênis, com um brasileiro, estaria em todas as páginas dos jornais daqui. Agora, eu não vou procurar jornalistas para dizer o que estou fazendo", disse.

Hermeto começou sua carreira com 15 anos tocando sanfona, mas é nos anos 60, no grupo "Quarteto Novo", composto por Heraldo do Monte, Airton Moreira e Theo de Barros, e mais Geraldo Vandré, que ele consolida uma carreira, que hoje reúne uma obra com mais de 4 mil composições. Em 1973, lança seu primeiro disco - "Música Livre de Hermeto Paschoal". Nesta fase, que se estende por 10 anos, Hermeto sofre de dores terríveis no estômago e fígado, conseqüência de uma esquistossomose não diagnosticada.
Em 1977, grava seu segundo trabalho - "Slave Mass" - já nos Estados Unidos, uma vez que no Brasil não permitiam usar animais em estúdio, indispensável no disco. Em Los Angeles, pode gravar "Slave Mass" com dois porcos: um produzia o som do agudo e outro do grave.

Em Nova York, conhece o grande trompetista americano Miles Davis. Embora não fale inglês, Hermeto travou, mesmo assim, grandes embates teóricos com Davis, tendo Aírton Moreira como tradutor. "Davis, modéstia à parte, teria que aprender um pouco mais para chegar onde eu estava", disse Paschoal. Hoje, o Brasil é o País de maior musicalidade do mundo e "o Jazz dos Estados Unidos está pedindo penico", brinca o músico.

A seguir, o papo de Hermeto com o caderno "Fim de Semana":

Gazeta Mercantil - Você trouxe para a prática a música erudita contemporânea, que é a experiência com os sons e ritmos.

Hermeto Paschoal - Creio que sim. Quando aprendi teoria, a minha cabeça já estava pronta. Conheço a teoria, mas tudo que faço é intuitivo. Não premedito. Aprendi teoria musical depois dos 40 anos. Hoje, escrevo para qualquer tipo de sinfônica, como a peça de uma hora de música para a Orquestra Sinfônica do Amazônas. O primeiro movimento da sinfonia eu abri com os violinos - que são como passarinhos - uma vez que será tocado às 6 horas da manhã, em um espaço aberto, junto à natureza. A sinfonia será um diálogo com a natureza, com os passarinhos e outros animais.

Gazeta Mercantil - E a música brasileira, como anda?

Individualmente há grandes músicos. Uma meninada nova tocando bem. Tem mais quantidade e qualidade do que antigamente. Só que, o desejo de ficar rico, faz muitos deles tocar música brega e começam ganhando mais do que eu.

Gazeta Mercantil - Qual sua relação com o dinheiro?

Se eu pudesse matar o dinheiro me tornaria um criminoso. É o câncer do mundo.

Gazeta Mercantil - Como você administrou seus problemas de saúde?

Eu tinha esquistossomose (infeção no intestino e no fígado) e no Brasil não havia cura. Quando fui aos Estados Unidos em 1974, conheci Miles Davis, que me ajudou a curar a doença. Quando tocava na boate Stardust, em São Paulo, achavam que eu tinha problema no duodeno e a vesícula preguiçosa. Em Nova York, descobriram que, na verdade, era esquistossomose e lá tinha cura. Fiquei 10 anos com a doença. Às vezes, a dor era tão forte que precisava tomar morfina. A Ilsa, minha ex-esposa que está lá no céu, é que ia buscar a morfina, porque precisava de receita médica.

Gazeta Mercantil - A doença atrapalhou sua produção musical?

Às vezes, quando estava tocando órgão no Stardust tinha, que sair no meio do show para ir ao pronto-socorro. Foram dez anos em que produzi mais do que agora, em meio ao sofrimento da doença. A raiva pode ajudar quando você tem a convicção de que vai conseguir o que almeja.

Gazeta Mercantil - Nesta época, você fez o primeiro disco - "Música Livre de Hermeto Paschoal".

Sim, e o disco seguinte, "Slave Mass", foi gravado nos Estados Unidos, uma vez que era proibido levar animais aos estúdios daqui. Um fazendeiro do Texas levou seus suínos à gravadora. Airton Moreira ficou no estúdio com os animais, e eu na técnica para dizer qual dos porcos ele deveria mexer: "Airton mexe no grave. Agora, no agudo".

Gazeta Mercantil - E como foi a sua relação com o trompetista Miles Davis?

Profissional e muito espiritual. Eu notava que os músicos de lá não se relacionavam muito com ele, por inveja, por ser considerado o maior trompetista americano. O Aírton e a Flora Purim trabalhavam para Davis, fazendo arranjos. Davis pediu a Aírton para me levar à casa dele. Aírton ficou preocupado por eu não falar inglês. Eu disse, Aírton não se preocupe: ele (Davis) sabe que nossa conversa é espiritual, que é pau a pau no campo musical. Ele, modéstia à parte, teria que aprender um pouco mais para chegar onde eu estava. Quando cheguei na casa dele, me perguntou: você tem ouvido absoluto? É que quando toco trompete, toco em si bemol, e nas nossas escolas aqui, ensinam para ficar com a nota na cabeça para sempre lembrar. Eu disse que não precisava que tocasse a nota. Apenas indique a nota que deseja sem que eu precise ouvir nada. Ele olhou para o Aírton e disse: isso não pode. Aí eu dei o si bemol. E disse a ele: vê se sobe devagar a escada, se não você vai tocar desafinado lá em cima. Aí, me batizou de Albino Louco.

Gazeta Mercantil - E como vem essa sua intuição musical?

Teoria não é música. Música não se aprende, você se alfabetiza musicalmente. Se for para a escola sem tocar nenhum instrumento você é um robô. Qualquer cara sem dom musical pode tocar música por teoria. Em Porto Alegre, quase me mataram, por dizer que a sinfônica não tinha mais que dez músicos de verdade. Fiz milhares de composições, mas só tenho umas 100 músicas gravadas. "Bebê" (hoje um clássico da música universal que foi gravado em 1973), é bem tocado.
Gazeta Mercantil - E o chorinho?
Eu tocava muito chorinho. Agora o chorinho está como o bem-te-vi, muito judiado.
Gazeta Mercantil - Como você vê o apoio oficial à música ?
Deveria ser criado o Ministério da Música para cuidar de todos os aspectos que envolvem o trabalho musical. O Gil (Gilberto Gil, ministro da Cultura), pela inteligência, poderia fazer muita coisa, mas pelo que conheço do Gil ele vai mandar axé para o mundo inteiro. E não tá com nada o axé. O Gil é um talento, mas se fosse escolher alguém para ministro da Música, seria Arthur da Távola, valorizando a música regional. A Rede Globo, por exemplo, procurou nivelar o País musicalmente. É um desastre para o País. A Globo faz o que quer, uma música de consumo e cheia de rótulos. Graças a Deus, os jovens não estão aceitando.
Gazeta Mercantil - Você sente um pouco de abandono oficial em relação ao seu trabalho?

Não, não. Se não tiverem cuidado, eu vou abandonar muita coisa. Estou feliz. Eu não queria estar em um lugar cheio de coisas em volta. Agora, eu vejo gente querendo fazer um show em teatros do governo, onde cobram R$ 5 mil para um espetáculo. Isso é uma injustiça, pois estamos no País mais musical do mundo.

Gazeta Mercantil - Os Estados Unidos não são mais evoluídos na música?
Os Estados Unidos já tiveram sua fase boa, mas já era. O jazz está pedindo penico lá desde 70. Eles passaram a importar gente de outros lugares do mundo. Agora está acontecendo o seguinte: eu sou musicalmente, um cidadão do mundo. Eu estive lá. O cara que me copiar, eu reclamo. Eu sou um pintor da música. Não quero que ninguém mexa nos meus quadros. Quero que se influenciem com eles e mostrem que são criativos. Não fico feliz em ver alguém me imitando. Gosto que as pessoas sintam meu trabalho e tenham o seu.

Gazeta Mercantil - Qual a sua visão do Brasil, para aonde estamos indo?

Hoje está todo mundo duro e sumido, mas as pessoas estudam mais, a cultura melhorou. Fico admirado quando vejo uma maioria de jovens no auditório. Vou para o Japão tocar para 10 mil pessoas, a maioria jovens. É a música do Brasil, lá fora, fazendo a cabeça dos jovens. Quando fui tocar na Bélgica me disseram: olha, o pessoal aqui é muito frio e vai pouca gente. Eu disse: olha, estou com 250 volts e lá estavam mais de 1,2 mil pessoas. Em Berlim, compus - em duas semanas - uma sinfonia falando da tristeza do povo Alemão, que foi um sucesso de público. Quero inovar cada vez mais, para não ser visto como músico do passado. É como se as pessoas das gerações futuras dissessem: "Que pena que não vivi aquela época." Creio que por uma ou duas gerações há uma trabalho feito e eu posso viajar para o céu amanhã.

(Ivanir José Bortot e Guego Favetti - músico paranaense)




Princípios da Música Universal criada por Hermeto Pascoal





terça-feira, 5 de maio de 2009

No Princípio Era a Luz - II

Como Surgiu a Noite

O céu era azul, a claridade imóvel, desde que o mundo se fêz mundo. Mas contam que, certa vez, um índio encontrou um caroço de fruta. Sacudiu-o e sentiu qualquer coisa dentro. Levou-o ao ouvido e escutou curiosos ruídos. Eram vozes soturnas de aves, de sapos e de rãs, de grilos e de outros insetos. Cheio de curiosidade, quebrou-o...E a Noite surgiu, cobriu de trevas e de silêncio o mundo. E com a Noite, vieram as estórias que se contam ao pé-do-fogo.

Assim, da curiosidade dos homens nasceu a Noite. E a própria Noite, com a quietação, com as vozes veladas que se fazem mais audíveis, se transformou na maior alimentadora da curiosidade dos homens. Pois é ao crepitar do fogo doméstico, nas horas noturnas de descanso, que os índios perguntam a si mesmos e aos outros o "porquê" das coisas. Por quê, por exemplo. surgiu a Lua no meio da Noite, quando a estória conta que do caroço saiu apenas a Noite, sozinha, sem Lua nem nada?
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Afonso Schimidt, baseado em Ciro Dutra Ferreira, Ivo Sanguinetti, J.C. Pixão Côrtes e Luís Carlos Barbosa Lessa, do Centro de Tradições Gaúchas, em Lendas Brasileiras, Livraria Pluma, Porto Alegre.

Ilustrações: José Lanzellotti

segunda-feira, 4 de maio de 2009

No Princípio Era a Luz



Como Surgiu a Lua

No princípio a Lua vivia na terra e era conhecida pelo nome de Capéi. Era uma moça tão branca que parecia recortada nas águas da cachoeira. Passava os dias no fundo do bosque, acendendo as luzinhas dos vaga-lumes, ou à beira das lagoas espalhando reflexos.

Os homens a chamavam de Capéi e não sabiam muita coisa a seu respeito. Ela, no entanto, exercia influência sobre os reinos da Natureza. Dizia-se que regulava as marés, a germinação das sementes, o brilho de certas pedras de cor, o fluxo das mulheres, o nascimento das crianças e dos bichos. Os índios, para cortar o pau e fazer um arco, para plantar uma roça ou para armar um côvo na beira do rio, costumavam consultá-la. Os médicos-feiticeiros, para propinar uma erva ao doente, ou para predizer as coisas boas ou más que estava, para acontecer, íam interrogá-la no fundo do bosque.

Aquela vida apagada acabou por enfadar Capéi. E isso teve um fim quando ela se indispôs com certo feiticeiro das vizinhanças. Cheia de mágoa, resolveu abandonar a companhia dos homens, seus irmãos por parte de Deus, e subir para o céu, na esperança de uma vida melhor. E se bem pensou melhor fez.

Dali por diante dedicou-se a cortar cipós dos que pendiam das altas árvores. Depois, cochando-os, metendo um bastão de dois em dois palmos, como degraus, fabricou gigantesca escada que parecia não ter fim. Terminada essa obra, foi ao ôco de um pau e chamou a ave que lá passava os dias esperando a noite, para se entregar à caça dos insetos que eram seu alimento. Falou-lhe:

- Comadre Coruja, quer você me fazer um favor?

Capéi pediu-lhe que subisse até a porta do céu e lá ficasse segurando a extremidade da escada. A coruja, muito serviçal, prontificou-se a satisfazer o seu desejo. Assim, Capéi subiu para a vastidão azul, sem descansar nas grandes nuvens brosladas de ouro que encontrou no caminho.

Lá chegando, começou por indicar às filhas, que são as estrelas, seus lugares no firmamento. E desde então permanece lá em cima, a alumiar nas trevas da noite os passos de seus irmãos nos caminhos da terra.

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Afonso Schimidt, baseado em Ciro Dutra Ferreira, Ivo Sanguinetti, J.C. Pixão Côrtes e Luís Carlos Barbosa Lessa, do Centro de Tradições Gaúchas, em Lendas Brasileiras, Livraria Pluma, Porto Alegre.

Ilustrações: José Lanzellotti

quinta-feira, 30 de abril de 2009

O Congado

O negro escravo em Minas Gerais, por extensão no Brasil, teve quatro saídas: 1) social, através do congado, particularmente do reinado; 2) religiosa, através da irmandade Nossa Senhora do Rosário, que abrange os santos pretos (São Benedito, Santa Efigênia e Nossa Senhora Aparecida); 3) cultural, através da arte, principalmente música, dança, pintura, entalhe, escultura, ourivesaria e também do esporte; 4) política, através do quilombo ou aldeia de Xangô.

Congado é a designação genérica de uma grande família coreográfica, não apenas congos, estabelecida por negros escravos em louvor a Nossa Senhora do Rosário e santos pretos. È festa de devoção, um ritual sagrado, embora o profano a ela se associe com pujança.

Em geral, dá-se o nome de congada à exibição ritmo-plástica de uma guarda filiada à irmandade; congado é a instituição que une todos os membros da grande família, conforme já o definimos no parágrafo anterior.

O interesse pelo congado cresceu bastante, alargou-se no espaço e no tempo, ganhando devotos em quase todos os lugares do país. Em Minas Gerais ele tem força e brilho extraordinários. O dia da padroeira é 7 de outubro, mas as comemorações abrangem um ciclo – vão de agosto a outubro.

André João Antonil (pseudônimo do padre jesuíta João Antônio Andreoni), que esteve em Minas de 1705 a 1706, deu notícia dessas festas em sua obra Cultura e opulência do Brasil, publicada em 1711. No entanto, sabe-se de um registro de congos em Lisboa no ano de 1496, por conseguinte, antes da descoberta do Brasil

É que missionários franciscanos distribuíram estampas de Nossa Senhora do Rosário aos negros africanos, no último quartel do século XV, a fim de confundi-la, propositadamente, com Ifá, orixá da adivinhação, que ostentava ao pescoço uma guia feita de coquinhos de palmeira de igual nome, semelhante ao rosário de Maria. Ao desembarcarem em nosso país, muitos negros já conheciam a estampa da Santa.


Com respeito à origem da devoção, conhecem-se duas explicações, uma lendária, a outra científica. Segundo a primeira, um preto velho, alquebrado, à beira da praia, apoiando-se em um bastão, olhava saudoso o mar, rumo à África. Eis senão quando vê uma mulher que lhe acenava, com um pano azul, de um ilhéu próximo. Instintivamente, fixando a mulher, ergue o bastão, que se transformou em uma ponte. Atravessando-a, a mulher veio ter com ele e chorou, chorou...de ver o sofrimento do preto velho. Era Virgem Maria. As lágrimas rolavam e se cristalizavam, tornando-se sementes, lágrimas-de-nossa-senhora, que germinaram. Delas os devotos passaram a fazer seus rosários. Conforme a explicação científica, o congado é obra sincrética, uma mistura de fragmentos de crenças, predominantemente negras. A estas somaram-se elementos do catolicismo rústico ou doméstico e ritos ameríndios. O congado é crioulo, já se vê.



Tal como existe hoje em Minas Gerais, o congado é uma árvore de quatro raízes. Ou por outras palavras, resulta de quatro vertentes doadoras reunidas no Brasil por obra do sincretismo, da maneira a seguir:

1) Guardas ou Ternos– Saíram do candombe, reconhecido pelos irmãos do rosário como sendo o “pai de todos”, elo perdido entre África e Brasil. Significa dizer entre o culto jejê-nagô e a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Nenhuma guarda, seja qual for, terá menos de doze varsais (figurantes). Primeiro nasceu o congo, depois na seqüência moçambique, marujo, catopé, caboclinho, cavaleiro de São Jorge e vilão. São sete guardas ao todo, sem falar no ancestral mítico – o genitor, o candombe, que não sai à rua, não desfila, funciona entre quatro paredes, é um grupo fechado, espécie de maçonaria dos pretos. O candombe é o lado africano do congado, procede de crenças iorubas, principalmente do culto do Ifá. Como se disse, é a raiz africana – genuína, pura, verdadeira. Até recentemente, uma guarda de candombe só se instalava sob os auspícios de uma outra da mesma natureza, já consagrada, como se fosse um batismo ou certidão de nascimento.

2) Reinado – representa a fixação de lembranças da época faustosa da rainha Jinga (Njinga Mbandi de Angola), revivida com maior grandeza por Chico Rei, em Vila Rica. Parece-nos mais recente do que as guardas, mas se incorporou com ênfase e devoção e deu-lhe brilho extraordinário. A corte se constitui de rei e rainha congos, princesas, juízes e juízas, guarda-coroas, mordomos, aias e mucamas. O rei e a rainha congos desfilam sob enorme umbela azul, amarela ou vermelha, franjada de ouro, conduzida pelo caudatário, em roupa de gala. A função do reinado é unir as diferentes guardas em um mesmo sentimento de fé em Nossa Senhora do Rosário, e manter coesos os irmãos de cor.



3) Embaixadas – se traduzem por coragem e valentia, comunicam intenções dos respectivos reis e rainhas. Associaram-se aos marujos, por influência da tradição carvolíngia e onde sobressai a rezinga, que é uma representação entre vermelhos e azuis (mouros e cristãos) sempre que os embaixadores malogram em sua missão de paz. A função da embaixada é reviver o difícil papel de embaixador em tempo de guerra.



4) Irmandade de Nossa Senhora do Rosário – engloba também os santos pretos, fundada em 1714, só institucionalizada em 1728, conforme registro no Livro de Compromisso dos Irmãos do Rosário, na cidade do Serro, antigo arraial de Ivituruy, depois de Vila do Príncipe. Aos primeiros contatos, percebe-se que a Irmandade foi inspirada nas corporações de ofício da Idade Média. Seu papel ou função é dar estrutura legal à sociedade dos pretos, com estatutos e normas específicas de boa convivência com os filiados.


A prática do congado é transmitida de pai para filho, aprende-se de criança, por imitação, vendo e ouvindo cantar e dançar.

Condena-se com veemência o abastardamento atual dos modelos antigos do congado, sobretudo relacionados com a roupa peculiar de cada guarda. Assinale-se, todavia, que não se pretende uniformizar o congado nem opor-se a mudanças culturais desejáveis, apenas conservar a vestimenta sancionada pela tradição e consagrada.

De três maneiras pode-se individualizar uma guarda sem desnaturar-lhe as características nem comprometer sua autonomia: 1) através de um nome particular dado ao grupo; assim por exemplo, Guarda de Moçambique São Benedito de Ouro Preto. 2) pelo estandarte da Unidade, cujo motivo da pintura seja único ou privativo, embora a estampa da santa seja comum aos estandartes de todas as guardas, não importando procedência ou espécie; em Minas Gerais, o bandeireiro é chamado alferes. 3) pela cor ou combinação de cores do vestuário e dos paramentos.


As gungas atadas à altura dos tornozelos do moçambiqueiro representam os grilhões com que se prendiam os escravos. Então, elas são um símbolo de tortura da época da escravidão.

O lenço à cabeça é fixação de lembrança histórica do tempo em que foi empregado para amenizar o rigor do sol e tempestades de areia em Moçambique.

O bastão de comando, ligado a Oxóssi, teria vindo primeiro da nação ijexá, cultura sudanesa. Um símio o recebera e com ele dançou pela primeira vez. Três madeiras o compõem – cedro, com que se fez a cruz do martírio do mestre; braúna, da qual saíram os cravos; e acácia, a tabuleta mediante a qual se indicou a culpa de Jesus e dele os fariseus escarneceram.

As argolas presas aos lóbulos das orelhas são reminiscência de antigo costume das nações bantas, particularmente moçambique.

No último dia dos festejos do congado há o congraçamento dos irmãos do rosário, encerrado com um lauto almoço, elemento forte de coesão entre os membros da Irmandade.
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Bibliografia:

MARTINS, Saul – Panorama Folclórico; SESC/MG. Belo Horizonte, 2004.
Fotos: Tarcísio Luiz de Paula - Cortejo FAN (Festival de Arte Negra) 2007 - Belo Horizonte/MG